— É um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gouvêa.
— Não sei quem é.
Médico e subdelegado vieram daí a pouco; fez-se o curativo, e tomaram-se as informações. O
desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador em
Catumbi. A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo ajudado pelo estudante, Fortunato
serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o
ferido, que gemia muito. No fim, entendeu-se particularmente com o médico, acompanhou-o até o
patamar da escada, e reiterou ao subdelegado a declaração de estar pronto a auxiliar as pesquisas da
polícia. Os dous saíram, ele e o estudante ficaram no quarto.
Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranqüilamente, estirar as pernas, meter as
mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo,
moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de
barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria quarenta anos. De
quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma coisa acerca do ferido; mas
tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante
recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a
um ato de rara dedicação, e se era desinteressado como parecia, não havia mais que aceitar o
coração humano como um poço de mistérios.
Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a cura fez-se depressa, e,
antes de concluída, desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu
as indicações do nome, rua e número.
— Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o convalescente.
Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras
de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no
joelho. Gouvêa, defronte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos, levantando os
olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediu licença
para sair, e saiu.
— Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se.
O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo o desdém, forcejando por
esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no coração só ficasse a memória do benefício; mas o
esforço era vão. O ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora o benefício, de tal
modo que o desgraçado não teve mais que trepar à cabeça e refugiar-se ali como uma simples idéia.
Foi assim que o próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento da ingratidão.
Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os
homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser
supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo. Picado de
curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera dele o
oferecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não achou nenhum.
Tempos depois, estando já formado e morando na rua de Matacavalos, perto da do Conde,
encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a freqüência trouxe a
familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi.
— Não sabia.
— Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo.
— Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo.
Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em
companhia da senhora, que era interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas
chapas de estanho, duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes. Os
obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era pouco.
Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e
submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove. Garcia, à segunda vez que lá
foi, percebeu que entre eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade
moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e
confinavam na resignação e no temor. Um dia, estando os três juntos, perguntou Garcia a Maria
Luísa se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera o marido.
— Não, respondeu a moça.
— Vai ouvir uma ação bonita.
— Não vale a pena, interrompeu Fortunato.
— A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o médico.
Contou o caso da rua de D. Manoel. A moça ouviu-o espantada. Insensivelmente estendeu a mão
e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração.
Fortunato sacudia os ombros, mas não ouvia com indiferença. No fim contou ele próprio a visita
que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos
silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. A dobrez é
evasiva e
oblíqua; o riso dele era jovial e franco.
" Singular homem!" pensou Garcia.
Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médico restituiu-lhe a
satisfação anterior, voltando a referir a dedicação deste e as suas raras qualidades de enfermeiro; tão
bom enfermeiro, concluiu ele, que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo.
— Valeu? perguntou Fortunato.
— Valeu o quê?
— Vamos fundar uma casa de saúde?
— Não valeu nada; estou brincando.
— Podia-se fazer alguma cousa; e para o senhor, que começa a clínica, acho que seria bem bom.
Tenho justamente uma casa que vai vagar, e serve.
Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a idéia tinha-se metido na cabeça ao outro, e não foi
possível recuar mais. Na verdade, era uma boa estréia para ele, e podia vir a ser um bom negócio
para ambos. Aceitou finalmente, daí a dias, e foi uma desilusão para Maria Luísa. Criatura nervosa
e frágil, padecia só com a idéia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades
humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa.
Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois. Aberta a casa, foi ele o
próprio administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos,
drogas e contas.
Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua D. Manoel não era um caso fortuito,
mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não
recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para
tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato estudava,
acompanhava as operações, e nenhum outro curava os cáusticos.
— Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele.
A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa; ali
jantava quase todos os dias, ali observava a pessoa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era
evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa
o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto da janela, ou
tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu
por ele, quis expeli-lo para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas
não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio,
mas não se deu por achada.
No começo de outubro deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos do médico asituação da moça. Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas
em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos animais atordoavam os doentes, mudou
o laboratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer. Um dia, porém, não
podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe que, como cousa sua, alcançasse do marido a
cessação de tais experiências.
— Mas a senhora mesma...
Maria Luísa acudiu, sorrindo:
— Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe
dissesse que isso me faz mal; e creia que faz...
Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra
parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela
como pelos animais, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe
se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada.
— Deixe ver o pulso.
— Não tenho nada.
Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter
alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em tempo.
Dois dias depois, — exatamente o dia em que os vemos agora, — Garcia foi lá jantar. Na sala
disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no
momento em que Maria Luísa saía aflita.
— Que é? perguntou-lhe.
— O rato! O rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se.
Garcia lembrou-se que na véspera ouvira ao Fortunado queixar-se de um rato, que lhe levara um
papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia
no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava.
Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado
pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava
ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôsse
a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado.
— Mate-o logo! disse-lhe.
— Já vai.
E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das
sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo
movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensangüentado, chamuscado, e não
acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para
impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha
medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato
cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para
o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto,
para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida.
Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem.
Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a
audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura
sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto
posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que
tivesse ainda
um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela
última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa
mistura de chamusco e sangue.
Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra oanimal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida.
"Castiga sem raiva", pensou o médico, "pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que
só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem".
Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas
o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito.
Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma troca
das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma redução de Calígula.
Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe
nas mãos e falou-lhe mansamente:
— Fracalhona!
E voltando-se para o médico:
— Há de crer que quase desmaiou?
Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela
com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão
de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o marido
sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar
não foi alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria
exposta a
algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a
possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar.
Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica,
velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a
notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custavalhe
perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos.
Mas foi tudo vão. A doença era mortal.
Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do marido subjugou
qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e
dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente,
devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou
um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela
expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só.
De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala
Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o
médico disse-lhe que repousasse um pouco.
— Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois.
Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois
acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala.
Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta,
estacou assombrado.
Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as
feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi
nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da
amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo
de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao
ressentimento.
Olhou assombrado, mordendo os beiços.
Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O
beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões,
lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou
tranqüilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa.
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